
Nesta matéria conversamos especificamente sobre as vacinas sendo desenvolvidas para combater a pandemia de Covid-19 no Brasil.
Essa é a segunda parte de um artigo no qual explicamos a motivação e o funcionamento das vacinas e campanhas de vacinação no Brasil. A matéria a seguir pressupõe que você já está a par daquele conteúdo. Em caso contrário, recomendo fortemente que você dedique um pouco de seu tempo ao artigo anterior .
O que é a Covid-19
Chegamos enfim ao nosso maior desafio sanitário em cem anos: a pandemia de Covid-19.
Essa doença é provocada por um vírus nomeado como SARSCOV-2. Sim, o número no fim tem significado, como você pode ter suspeitado: o nome inteiro indica que que o vírus pertencente à família Corona (COV: Corona Vírus. É uma família na qual a proteína usada para entrar nas células envolve o patógeno, como uma coroa), uma evolução (-2) do vírus original que já provocou uma pequena pandemia prévia chamada SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome: Síndrome Respiratória Aguda Grave), chamado então de SARSCOV-1.
Espere… Então a Covid-19 teve uma predecessora? Sim, teve. A SARS apareceu também na China, em 2002, também com potencial pandêmico. Mas sendo bem menos contagiosa, foi rapidamente contida e não se registram casos desde 2004. a SARS chegou ao Brasil, mas se calcula que infectou bem menos de mil pessoas. No entanto, é bem perigosa: cerca de 10% dos infectados pode vir a óbito dentro do período de duas semanas. A alta taxa de fatalidades acaba limitando o alcance desse vírus: uma infecção grave debilita ou mata o doente antes que ele tenha a chance de transmitir muito a doença. Se estima que a SARS infectou cerca de 8000 pessoas no mundo inteiro, e foi responsável por cerca de 800 mortes em dois anos.
Infelizmente, na natureza os seres vivos evoluem para sobreviver melhor, e um vírus faz isso melhor do que ninguém. O vírus da SARS consertou suas deficiências evoluindo para o SARSCOV-2, a Covid-19. Ele é bem mais contagioso, fica em silêncio no corpo por mais tempo, e mata bem menos pessoas (não mais umas 2 a cada 100), permitindo dessa forma que se alastre muito mais.
Como sabemos disso tudo a respeito desse vírus? Houve um esforço mundial (inclusive nosso, da FioCruz) de mapear o DNA dele, o que consegue nos dizer muitas coisas: de onde ele veio, como ele age, seu alvo de infecção, etc.
Mas a Covid-19 não veio porque alguém comeu um morcego? Não. Essa é uma anedota um tanto cruel. O DNA nos mostrou que o SARSCoV-2 é um vírus que se especializou em infectar humanos a partir de outro com esse mesmo alvo.
Não é um vírus criado em laboratório? Não. Essa é outra coisa que o DNA nos mostrou. Pense no DNA como uma “música” que define o que um ser vivo é (inclusive nós). Uma manipulação genética que “apressa” a evolução natural cria dissonâncias nessa “música”, mas nenhuma “nota” dissonante foi encontrada no vírus da Covid.
Acredito que o mais recente trabalho consistente sobre o SARSCOV-2 pode ser encontrado neste artigo recente da revista Nature , você pode usar o tradutor do seu navegador, se for necessário.
Por que na China? É um dos países mais populosos do planeta, então parece ser uma simples questão de estatística. Se você pudesse jogar da Lua uma pedra em direção da Terra e ela caísse na cabeça de alguém, a possibilidade da pessoa atingida morar na China é um pouco acima da média. E uma vez que a SARS já tinha começado lá, é normal que a evolução dela também tenha. Infecções não são como raios (segundo o ditado), elas gostam de cair no mesmo lugar.
Pronto, soldado. Agora que você conhece o inimigo, vamos ver o que estamos fazendo a respeito…
As vacinas para a Covid-19
Segundo Felipe Carvalho, coordenador do MSF - Médicos Sem Fronteiras , há hoje em desenvolvimento no mundo mais de 180 vacinas para a Covid-19. Esse número chega a 193, segundo a própria OMS. De todo esse esforço, quatro delas se destacaram por estarem com suas pesquisas progredindo de forma rápida e com resultados promissores, e todas essas estão sendo testadas no Brasil. Isso ocorre não apenas pelo nosso histórico promissor na produção e testagem de vacinas, mas por um fato infeliz: a epidemia descontrolada e grande quantidade de infectados por dia favorece a Etapa Clínica da pesquisa: nossos profissionais de saúde estão bastante expostos à infecções, então são voluntários melhores.
Como funcionam
O que é um vírus? Esses micróbios estão na fronteira do que pode ser considerado vivo. É a estrutura mais simples na natureza que seja capaz de se reproduzir: apenas uma fita de DNA com seu código genético (que é onde mora o perigo) e uma “casca” de proteínas que protege esse material e faz com que o vírus invada outras células. Uma vez dentro, o vírus substitui o código da célula pelo seu, e a obriga a produzir outras cópias dele mesmo.
Conclusão importante: eles não conseguem se reproduzir sozinhos. Se não houverem hospedeiros viáveis para um vírus, a longo prazo ele é extinto.
Desde o conceito inicial de vacina até hoje, os métodos para a criação delas evoluíram bastante, principalmente quando estamos falando de vírus (um patógeno mais difícil de lidar). Atualmente dispomos de técnicas mais sofisticadas:
- Com o vírus original: essa é a técnica tradicional. Se mata, enfraquece ou inativa o vírus que causa a doença, e então se apresenta o resultado ao paciente para que o seu sistema imune reaja.
- Vetor viral: se usa um outro vírus qualquer, modificado geneticamente para ficar com a “casca” de proteína igual ao que estamos querendo combater, e o atenuamos (para que não cause quaisquer problemas) antes de apresentar ao sistema imune.
- À base de proteínas: não existe qualquer presença viral nessa vacina. Ela é feita apenas com as proteínas que o vírus usa para se proteger ou atacar.
- Vacinas genéticas: O método mais avançado e inovador, ainda não usado em nenhuma outra vacina em uso. Ele induz as células do próprio corpo a produzirem proteínas características do vírus alvo.
Falando de Covid-19, essas são as vacinas mais promissoras, que estão sendo testadas no Brasil:
- A Vacina de Oxford (também conhecida pelo nome do laboratório, Astra Zeneca): é uma vacina de vetor viral (tipo 2 na lista acima). Usa um inocente adenovírus modificado para se parecer com o da Covid. O que oferece mais segurança ainda é que esse vírus é digamos castrado, ou seja, não sabe se multiplicar, então não se espalha pelo corpo nem pode infectar ninguém. Ela funciona porque o sistema imune reconhece e aprende a atacar a “casca” do vírus, deixando os invasores incapazes de atacar as células.
- A Vacina Chinesa (Sinovac): é uma vacina simples e direta que usa o método tradicional, ou seja, o próprio vírus original, porém “castrado” (não sabe se replicar). Utiliza a mesma técnica já usada com sucesso há anos no Brasil para as vacinas de gripe (as vacinas antigripais que usamos aqui hoje foram criadas pela Sinovac). Faz todo o sentido, já que a Covid-19 não deixa de ser um tipo de gripe.
- Vacina BioNTech e Wyeth/Pfizer: é uma vacina inovadora do tipo “genética” (tipo 4). Ela altera algumas células do nosso próprio corpo para produzirem as proteínas do vírus, fazendo com que o sistema imune reaja. A vantagem é que essas células produzem continuamente, então nosso corpo não “esquece”. É a que promete a defesa mais duraroura.
- Vacina Jansen-Cilag (Ad26.COV2.S, da Johnson & Johnson): Assim como a chamada vacina de Oxford, é uma outra vacina de vetor viral (tipo 2 na lista), e usa basicamente o mesmo método desta.
Qual o status de testes dessas vacinas no Brasil?
Em condições normais, a pesquisa e testagem de uma nova vacina pode levar entre 10 a 20 anos! No caso da Covid-19, o processo se encaminha para pouco mais de um ano ou dois desde a descoberta da doença, e é perfeitamente natural que essa rapidez desperte desconfiança em muitas pessoas, até mesmo em cientistas. Mas a Covid é um caso particular e uma oportunidade única. Por que?
A última grande pandemia mundial parecida com a Covid-19, um vírus respiratório (sim, essa não é a primeira vez) foi a “Gripe Espanhola” (que na verdade começou no Kansas) há pouco mais de um século atrás. Nessa época não havia nenhuma possibilidade de pesquisar uma vacina, e a pandemia foi combatida basicamente com isolamento social.
A situação agora é diferente, tanto do ponto de vista de ser possível pesquisar uma vacina, quanto porque nunca houveram tantos voluntários disponíveis, em tantos países que estão removendo entraves burocráticos para acelerar o processo. O fator limitante na fase clínica de testes de uma vacina é justamente a quantidade de voluntários. Dessa forma é possível fazer testes ainda rigorosos, porém mais curtos. Se isso funcionar, essas vacinas serão as mais avançadas e rápidas da História. Essas condições não devem mais se repetir, a não ser em caso de outra pandemia.
Protocolos mais eficientes, que aceleram o processo de testagem, estão sendo utilizados. Por exemplo, a ANVISA instituiu o processo de submissão continuada, que consiste em avaliar os dados de teste na medida em que eles vão sendo gerados, ao invés de aguardar a conclusão da fase inteira de testes e a geração dos laudos para apenas então analisar toda a documentação. O mesmo processo já é usado pela FDA estadunidense, a EMA (Europe Medicine Agency) e a PMDA japonesa. O rigor ainda é o mesmo, apenas a burocracia foi reduzida.
Um fator motivador que torna mais urgente essa pesquisa é que o vírus pode ainda evoluir, tornando inúteis as vacinas de hoje, caso a pesquisa consuma tempo demais.
Vejamos o status dos testes em etapa clínica mais avançados em território nacional.
A Vacina de Oxford
Quem está a frente dos testes em Rio de Janeiro e Salvador é o Instituto D’or, auxiliado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em SP.
Ao todo, cerca de 5 mil voluntários estão sendo testados nos três estados. Durante a fase 3 de testes, um dos participantes faleceu da doença mas se confirmou que ele fazia parte do grupo de controle que não tomou a vacina real.
Não há ainda qualquer previsão de conclusão da fase 3. Após a aprovação, a vacina será produzida pelo laboratório Bio-Manguinhos, ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por transferência de tecnologia.
A Vacina Sinovac
Quem coordena os testes com a CoronaVac é o Instituto Butantan, em SP. Testes realizados nas fases 1 e 2 da Etapa clínica consideram essa a mais segura vacina em testes no mundo. Em voluntários de 18 a 59 anos, 35% tiveram efeitos colaterais leves como dor no local da aplicação ou dores de cabeça. 0,1% tiveram febre baixa na segunda dose. Nenhum colateral grave foi registrado.
A vacina foi promovida e está atualmente em fase 3 desde Julho, e essa fase vai determinar de fato a sua eficácia. A fase dura até que um determinado número de pessoas entre os voluntários (lembrando que uma parte toma a vacina de verdade e outra não) seja infectado, o que não tem uma data certa pra acontecer. Uma previsão de conclusão dessa fase é em algum ponto entre Novembro ou Dezembro.
Atualização: No dia 09 de Novembro de 2020, a ANVISA determinou ao Instituto Butantan a paralisação dos testes da vacina CoronaVac devido à morte de um dos voluntários.
Esse é um procedimento necessário e normal em qualquer rotina de testes: qualquer coisa que ocorra com qualquer voluntário aciona uma parada para averiguação e auditoria. Isso faz parte do rigor de qualquer processo de testes e depõe a favor da equipe e não contra.
Em 10 de Novembro de 2020, o caso foi apurado pelo IML (Instituto Médico Legal) e o instituto confirmou que a morte do participante ocorreu por suicídio, e não tem qualquer relação com a vacina sendo testada. Após essa apuração, os testes da vacina podem ser retomados.
Um fato extremamente infeliz é que um político brasileiro atualmente empossado como Presidente da República se aproveitou do evento para atacar um adversário político, colocando em dúvida a própria pesquisa da vacina. Nós do Bazar Club repudiamos fortemente esse tipo de atitude, que consideramos indigna e perigosa. A saúde das pessoas não pode ser uma ferramenta politica, e esse é o motivo pelo qual a Agência de Segurança Sanitária é, e precisa continuar sendo, uma autarquia (governar a si própria).
Vacina BioNTech e Wyeth/Pfizer
Quem coordena os testes com essa vacina é o CEPIC (Centro Paulistano de Investigação Clínica) e a instituição Obras Sociais Irmã Dulce, Salvador - BA. Os testes estão sendo feitos com cerca de 2 mil voluntários em SP e BA.
As últimas declarações, de final de Outubro, indicam que a Pfizer não está em condições ainda de divulgar quaisquer resultados ou previsões, em nenhuma das frentes de teste pelo mundo.
Vacina Jansen-Cilag** (Johnson & Johnson)
Foi a última da nossa lista a ter os testes de Etapa clínica, fase 3, a serem liberados em Agosto.
Os estudos nacionais foram interrompidos pela ANVISA, quando um voluntário nos Estados Unidos apresentou sinais de uma doença não diagnosticada (foi preciso verificar se há ou não relação com a vacina), em 12 de Outubro. Os testes foram retomados em 3 de Novembro por aprovação da ANVISA, dado que não se encontrou relação da vacina com a doença do participante.
A responsabilidade dos testes dessa vacina no Brasil é também do CEPIC (Centro Paulistano de Investigação Clínica), e conta com 7 mil voluntários em vários estados.
Não se tem ainda qualquer previsão sobre a duração dos testes para esta vacina.
Como serão distribuídas
Primeiramente, vamos deixar esclarecida uma dúvida importante: a vacinação contra a Covid-19, independentemente de qual delas se torne disponível, será obrigatória?
É muito cedo para dizer, já que nenhuma delas ainda se tornou disponível e portanto não há políticas em curso para isso. No entanto, há sim, base legal para aplicar sanções a quem recusar a vacinação.
Em 6 de Fevereiro de 2020, foi votada em caráter emergencial pelo Congresso Nacional, e assinada pelo Presidente da República, a Lei 13979/2020 , de trata das medidas emergenciais de enfrentamento da pandemia em âmibito nacional. Ela lista em seu artigo terceiro quais são as medidas de enfrentamento que podem ser adotadas (nos quais se inclui a vacinação), e o inciso 4 determina: “As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”.
Independentemente de qualquer obrigatoriedade, agora que já sabemos que a vacinação não protege apenas o indivíduo vacinado e sim todo mundo, sendo também de fundamental importância para proteger aqueles que não podem se imunizar diretamente, fica claro que é um dever cívico e não uma escolha pessoal. A sociedade nos ajudou em todos os aspectos de nossas vidas, essa é a hora de retribuir.
Quaisquer vacinas que sejam aprovadas terão seu suprimento atendido por diversas fontes. Os Institutos nacionais já estão preparados para receber a transferẽncia de tecnologia necessária para a produção em território nacional, e nosso país já faz parte do consórcio internacional Covax, que dá acesso à produção de laboratórios no mundo todo.
Quais são os principais desafios para imunizar o mundo?
Há uma série de garantias que precisam ser obtidas para garantir o suprimento justo de imunizantes em todos os países. Felipe Carvalho, da organização Médicos Sem Fronteiras, enumera esses pontos no vídeo acima.
Fontes
Aqui valem as mesmas ressalvas que fiz no artigo anterior, replicadas aqui para deixar bastante claro:
Eu, o autor deste artigo, não sou biólogo, médico, infectologista ou epidemiologista. Tampouco represento qualquer interesse farmacêutico ou político.
Minha função aqui foi reunir, organizar e divulgar informação. Para escrever esse artigo, parafraseando Isaac Newton, “pude enxergar mais alto porque subi em ombros de gigantes”.
Deixo aqui o máximo possível das fontes e referências consultadas por mim, e encorajo o aprofundamento nestas para saber mais.
Este artigo também está aberto a quaisquer correções ou ressalvas de profissionais especializados. Basta entrar em contato conosco, informando a falha ou omissão, que a devida atualização será feita e os devidos créditos serão dados. Nossa mais honesta intenção é deixar os leitores bem informados e zelar pela saúde dos brasileiros.
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Conclusão
Agradecemos seu interesse e paciência por ter nos acompanhado até aqui. Caso este artigo tenha sido útil, por favor compartilhe, para deixar o máximo possível pessoas melhor informadas em um momento em que temos tantas mentiras (por vezes intencionais) espalhadas na Internet. A nossa única defesa contra a ignorância é a verdade.